Sandoval e Margarete expõe o drama de algumas pessoas em relação à tecnologia e o modernismo, muito presente nos dias de hoje. De um lado, o desejo de provar as novidades do mundo tecnológico, e de outro, a impossibilidade financeira em realizar esse desejo. O desprovimento das condições econômicas necessárias para acompanhar essas novidades do mercado, levam muitos indivíduos a uma grande frustração em suas vidas.
Sandoval era um homem muito trabalhador e muito ligado a família, há muitos anos trabalhava como servente de pedreiro em uma construtora. Era casado com Margarete, uma mulher simples e sem muita vaidade. Eram pais de um casal de filhos biológicos. Ainda era tutor de uma sobrinha de dez anos, cujo pai era o seu irmão Francisco, que trabalhava no campo para sobreviver, não tinha estudo nenhum e era quase analfabeto, apenas sabia assinar o nome.
O casal Sandoval e Margarete não pagavam aluguel, porque o pai de Margarete lhes havia emprestado uma casa de tábuas em um bairro da periferia, bem afastado do centro da cidade.
A honestidade era uma qualidade indiscutível de Sandoval, ele trabalhava duro, de sol a sol, para manter a família. Haviam dias que a vida se tornava muito difícil para ele, porque a grana realmente ficava escassa antes de chegar ao fim do mês. Margarete não tinha um emprego que lhe proporcionasse uma renda para ajudar o marido, ficava sempre em casa lidando com os afazeres domésticos e cuidando dos filhos. Quando o marido recebia o salário, entregava todo na mão dela e lhe dizia:
_ Está aí os trocos minha véia, pague as contas e compre as coisas que estão faltando em casa, e não esquece da minha buchada de bode! – dizia ele. É que toda vez que Sandoval recebia o seu salário, dava-se de presente uma buchada de bode no fim de semana seguinte, isso já era sagrado para ele. O alimento era preparado com muito esmero pela Margarete, com temperos especiais para não desagradar de modo algum o marido. Ele adorava aquele sabor, e tinha aquele momento como sendo um momento muito especial e importante do mês. Também era somente uma vez por mês, pois o seu dinheiro não dava para comer buchada todo fim de semana.
Margarete vez ou outra, comprava um vestidinho para ela e para a Clarinha sua filha, comprava também roupas para o marido, para o filho Luís, e nunca se esquecia da sobrinha Lorrany. É claro que as compras sempre eram parceladas em muitas vezes na loja. As compras de roupas e calçados para a família eram compradas no meio do ano, e somente terminava de pagar com o 13º salário de Sandoval.
Vida dura, a de Sandoval e Margarete, mas sabe que eles eram felizes mesmo assim! Com todas aquelas limitações financeiras das quais já estavam acostumados, eles ainda conseguiam achar graça na vida, e não viam os desafios da sobrevivência como sendo um peso duro de carregar.
Sandoval não era tão atrasado em relação à tecnologia, ele e sua mulher Margarete tinham um celular “pebinha”, que lhes ajudava na comunicação à distância. Para quem não sabe o que quer dizer “pebinha”, é uma expressão para descrever um aparelho celular muito simples, que só serve mesmo para fazer ligações e mais nada. Whatsapp? Instagram? Facebook? Nem pensar! Os aparelhos pebinhas não possuem suporte para tais aplicativos. Sandoval nem se interessava por isso. Nem ele e nem a Margarete. Ambos estavam muito felizes com os seus pebinhas.
No entanto, num dia qualquer durante o verão, o amigo de Sandoval, daqueles amigos do peito mesmo, sabe? O Nandão, que também trabalhava como servente de pedreiro na mesma construtora, comprou um celular bem moderno, que pegava Whatsapp, Instagram, Facebook, e ainda fazia fotos e filmagens bonitas por demais. Isso chamou muito a atenção dos colegas no trabalho. Mas poucos sabiam, apenas desconfiavam, de que Nandão havia se atolado de prestações na loja. E era verdade! Nandão parcelou o tal celular em doze vezes, com uma prestação muito alta. Mas Nandão não tinha um “pinto para dar água”, ou seja, não era casado, não tinha filhos, e o único gasto extra que ele tinha era uma cesta básica que ele comprava para sua mãe já idosa.
No dia em que Nandão comprou o celular moderno, já chegou no trabalho todo cheio das vaidades, exibindo o aparelho para todos os outros colegas trabalhadores. Todo mundo desejou ver de perto o novo celular do colega. Aquilo foi um acontecimento extraordinário, só se via as rodinhas de trabalhadores em volta de Nandão. O Mestre de Obras, chefe da turma, ficou observando aquele alvoroço todo e resolveu dar uns alertas bem sérios para que a turma voltasse para o trabalho, porque o serviço estava sendo prejudicado por causa das novidades de Nandão.
Naquele dia ao final da jornada de trabalho, Sandoval foi para a casa com o celular de Nandão dentro de sua cabeça, bem no centro de sua imaginação criando histórias e filmes. Dizia para si mesmo – eu quero um bicho daquele para mim, vou comprar um também! Nem que eu tenha que deixar de comer as minhas buchadas. A Margarete também vai ter que fazer umas economias lá em casa. Economizando nos gastos, eu vou poder comprar um celular para mim igual ao do Nandão. – Ele estava obcecado pelo celular moderno do colega.
Depois que chegou em casa tomou um belo banho, jantou um arrozinho bem soltinho que só sua Margarete sabia fazer, com aquela carne de sol frita e umas rodelinhas de tomate. Abriu a geladeira, pegou um copo de água fresca e ficou tomando olhando fixamente para a mulher lavando as louças na pia. O que Sandoval estava pensando? O leitor nem imagina? Sandoval estava pensando em como dizer para a mulher que iria comprar um celular moderno, caro demais para o seu bolso. Ele sabia que Margarete, mulher muito equilibrada, não iria permitir de jeito nenhum, essa aquisição! Até porque, Sandoval já estava há mais de três anos com uma janela enorme na boca, lhe faltavam quatro dentes no meio da arcada dentária superior. E quando sorria largamente, via-se apenas duas presas enormes, uma de cada lado, como se fossem os esteios de um portão. Isso nunca havia sido problema para ele, pois não era um homem vaidoso. Ele se preocupava mais era em colocar a comida na mesa e não deixar seus filhos e sua esposa passarem fome. Os dentes eram segundo plano, iria cuidar quando desse.
Depois que Sandoval viu aquele bendito aparelho de Nandão e o que ele fazia, ficou atordoado, desejou mesmo ter um igual para ele. _ Poxa vida, eu mereço! Eu dou um duro danado no trabalho há anos, e não posso me dar um presente desses?! – dizia para si.
Margarete terminou de lavar as louças sob o olhar de Sandoval, ali o tempo todo pensando em como falar de sua decisão de comprar o celular novo para ela. Chegou a hora de irem para a cama dormir. Ele foi na frente, perfumou-se todo e deitou esperando a esposa vir deitar também. Ele só queria falar do tal celular para ela, mas, como já conhecia Margarete, precisava preparar o terreno para ela compreender e não brigar com ele, precisava usar também as palavras certas.
Quando Margarete entrou no quarto, Sandoval, com uma voz melosa, puxou logo assunto com ela:
_ Ô minha véia, mas como você tá tão bonita hoje! Não pense que eu não vejo a sua beleza, é que as vezes eu chego cansado demais do serviço e acabado sem ânimo para nada. – Margarete deu uma olhada desconfiada para ele, e continuou calada. Mas ele continuou, doido para conversar.
_ Minha véia, me diz uma coisa, o que é que você está fazendo que tá ficando cada vez mais linda? Você está mais linda do que quando eu te conheci! É verdade minha flor! – disse Sandoval.
Ele estava a adocicar Margarete, que, já conhecendo o marido, questionou-o:
_ Fala logo Sandoval! Eu te conheço. Quando você vem com esse negócio de me elogiar, é porque está querendo me dobrar em alguma conversa. Vamos! Diga logo homem! O que é que você está querendo me dizer? - Perguntou impaciente.
_ Minha flor, eu não posso te elogiar que você já pensa mal de mim! – disse.
_ Imagina Sandoval, eu não estou pensando mal de você, eu só estou dizendo que você está querendo me dizer alguma coisa com todo esse rodeio, e pelo jeito eu não vou gostar. – disse Margarete.
_ Está bem Marga, sabe o que é...
_ Hum, Marga, né? O que é Sandoval? – perguntou Margarete olhando de rabo de olho para ele.
_ Nandão, aquele meu colega lá do trabalho, comprou um celular porreta demais ó! O bicho só falta falar sozinho!
_ E daí, Sandoval? O que me interessa se Nandão comprou ou não comprou um celular? – Margarete fez uma cara já quase adivinhando o que estava a sair da boca de Sandoval.
_ Daí Marga, que eu estava pensando se a gente...
_ A gente o quê, Sandoval?
_ Se a gente não podia comprar um igual! Eu fiquei pensando sabe, eu trabalho tanto, eu mereço ter um celular daqueles minha véia!
_ Quanto custa esse celular Sandoval?
_ É... bem... Anh...
_ Quanto custa o tal celular Sandoval? – Margarete perguntou novamente.
_ Três mil reais. – Disse levantando as sobrancelhas.
_ Você está louco Sandoval? Você está aí todo desdentado, precisando ir no dentista fazer uma ponte fixa para colocar nessa sua janela gigante, e ainda não foi porque o dinheiro que você recebe só dá para as nossas despesas aqui de casa, e você vem me falar em comprar um celular de três mil reais, Sandoval?! Você não está raciocinando bem, Sandoval! – Margarete ficou enfurecida com o marido.
_ Droga de vida! – ele disse decepcionado.
_ Droga de vida o quê, Sandoval? É a vida que nós temos meu bem! E eu não reclamo, a gente tem que viver de acordo com a realidade e tentar ser feliz com ela! – ponderou Margarete, sempre muito equilibrada.
Sandoval não se convenceu, e até se sentiu ofendido por Margarete ter tocado no assunto dos dentes dele:
_ Olha aqui, Margarete, você não tem que se importar com os meus dentes, com a minha janela na boca! Se eu que sou o dono da boca desdentada não estou me importando, porque você vai se importar? – disse zangado.
_ Ah meu querido, você é o dono da sua boca, mas na hora de me beijar sou eu que tenho que aguentar beijar um homem banguela.
_ Poxa, Margarete, você nunca reclamou dos meus beijos! – disse Sandoval, decepcionado.
_ Nunca reclamei porque sabia que você gastava o dinheiro com coisas úteis, mas para gastar com os supérfluos, aí não dá né meu filho? – disse.
_ Pois agora é que vou comprar mesmo! Vou comprar um celular igual ao do Nandão, e vou parcelar na loja em doze vezes. Eu vou abrir mão de arrumar os meus dentes, vou deixar de comer a minha buchada e de tomar a minha cervejinha, mas vou comprar um celular igual ao do Nandão. E por um ano, não precisa comprar roupas para mim, deixe que eu me viro com as que eu tenho. Amanhã eu vou na loja para comprar o meu celular.
_ Nossa, Sandoval, como você é cabeça dura! Você prefere comprar um celular caro desses do que ir ao dentista e arrumar seus dentes! Deus me livre, Sandoval, você não está raciocinando mesmo. – disse a mulher, muito decepcionada.
A discussão parou logo em seguida e os dois, já emburrados, viraram cada um para um lado da cama e foram dormir.
No dia seguinte Sandoval cumpriu o que havia dito, chamou Nandão e foi com ele até a loja onde o amigo havia comprado o celular. E como estava com o nome limpo, conseguiu comprar o tal aparelho moderno parcelado na loja.
Sandoval saiu da loja se sentindo tão feliz e realizado que resolveu ligar logo para Margarete, que ainda estava aborrecida com ele, mas ele estava tão radiante de felicidade que as brigas da mulher se tornaram engraçadas para ele. Quem olhava aquele homem em pé, parado na calçada da rua falando ao celular e dando gargalhadas de felicidade com a sua boca banguela, mostrando uma janela imensa na arcada dentária superior, não compreendia por qual razão um homem prefere adquirir um objeto caríssimo só porque “todo mundo tem um”, e deixa de cuidar da própria saúde física. Era um contraste entre a aparência e a realidade que estava por trás dela.
Muitas vezes, o que as pessoas mostram para a sociedade, não condiz com a realidade que elas vivenciam em seus quotidianos. São duas realidades paralelas – a que é de verdade, e a que as pessoas gostariam de viver – assim, os contrates entre vida maquiada e vida real, vão se chocando entre dias do ser humano.
Ao vencer a primeira prestação do celular, Sandoval já se apertou, pois o dinheiro não deu para arcar com as despesas de casa e pagar a prestação da loja. Houve intermináveis discussões em casa, porque Sandoval acusava a esposa de não ter economizado nos gastos do supermercado para sobrar o dinheiro de pagar a loja. E Margarete, se magoou muito com o marido, pois o preço das coisas é que tinha aumentado no supermercado, ela tinha feito de tudo para economizar nas despesas, mas ele a acusava de não ter ajudado nas economias.
Por amar muito o marido, Margarete resolver correr atrás de ajuda para socorrer ele, tentando conseguir um meio de ele ganhar um dinheiro extra. Ela falou com uma amiga sua que trabalhava para uma família de um bairro nobre, e esta deu-lhe uma informação de grande importância. Os patrões estavam precisando de um trabalhador para limpar um terreno. Foi aí que Sandoval conseguiu pagar a primeira prestação de seu celular moderno. Com isso ele perdeu a folga de um final de semana, porque teve que fazer este extra, mas pelo menos conseguiu honrar o seu compromisso na loja.
Já as próximas prestações, essas iriam trazer novos desafios para Sandoval e Margarete, e ela já estava ficando com uma pulga atrás da orelha com Sandoval por causa de um tal de Zap.
Não é à toa o ditado que que diz, que um bom observador é capaz de aprender muito mais do que aquele que lê com os olhos, enquanto a mente está a ver navios. Existem pessoas que aprendem muito mais na observância do que alguém lhes ensinando. Também há aquele ditado que diz que, se você não aprende em casa a vida vai lhe ensinar, vai de encontro a um aprendizado baseado na experiência e na observância do viver.
Nos dias de hoje, em que o consumismo vem crescendo cada vez mais, de forma assustadora, há uma desigualdade social muito latente e visível na sociedade. Mas no que tange exclusivamente à tecnologia, o consumismo avançou e derrubou barreiras diversas, inclusive a barreira do bom senso. Uma grande parcela da população mundial deixa de investir em saúde e conforto para adquirir bens de última geração. Os produtos tecnológicos subiram à cabeça das pessoas. Parece que a coisa mais importante é estar sempre competindo na aquisição de tecnologias modernas, é também ter um carro modelo novo e revolucionário, é ter um celular de última geração, ou até mesmo, vestir-se com a última tendência da moda porque todo mundo está vestindo.
O consumo consciente ainda é um desafio para o ser humano, e está longe de ser aderido na sociedade.
Rozilda Euzebio Costa
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