quarta-feira, 20 de março de 2019

Sandoval e Margarete (Um celular entre nós)


Esta história vem apresentar o drama de algumas pessoas em relação à tecnologia e ao modernismo, muito presente nos dias de hoje. De um lado, o desejo de provar as novidades do mundo tecnológico, e de outro, a impossibilidade financeira de realizar este desejo. O desprovimento das condições econômicas necessárias para acompanhar estas novidades do mercado, levam muitos indivíduos a uma grande frustração.

Sandoval era um homem muito trabalhador, há muitos anos trabalhava como servente de pedreiro para uma construtora, casado com Margarete, uma mulher simples e sem muita vaidade, pai de um casal de filhos biológicos, e ainda tutor de uma sobrinha de dez anos, cujo pai era o seu irmão Francisco que trabalhava no campo. Não pagavam aluguel porque o pai de Margarete lhes emprestara uma casa de tábuas em um bairro da periferia, afastado, localizado nas divisas da cidade.

A honestidade era uma qualidade indiscutível em Sandoval, ele trabalhava duro, de sol a sol, para manter a família. Haviam dias que se tornavam muito difíceis para ele, porque a grana realmente ficava escassa. Margarete não tinha um emprego que lhe proporcionasse uma renda, ficava sempre em casa lidando com os afazeres domésticos e cuidando dos filhos. Quando o marido recebia o salário, entregava todo na mão de Margarete e dizia: 

_ Está aí minha véia, pague as contas e compre as coisas que estão faltando em casa, e não esquece da minha buchada de bode! – dizia. É que toda vez que Sandoval recebia seu salário, se dava de presente uma buchada de bode no fim de semana, que a mulher comprava e lhe preparava com os seus temperos especiais. Ele adorava aquele sabor, e tinha aquele momento como sendo um momento muito especial e importante. Também era somente uma vez por mês, porque o seu dinheiro não dava para comer buchada todo final de semana.

Margarete vez ou outra, comprava um vestidinho para ela e para a Clarinha sua filha, comprava também roupas para o marido e para o filho Luís, e nunca se esquecia da sobrinha Lorrany. Claro que as compras sempre eram parceladas em muitas vezes na loja. Comprava no meio do ano para terminar de pagar com o 13º salário do marido. Mas sabe que eles eram felizes mesmo assim! Mesmo com todas as limitações financeiras das quais já estavam acostumados, eles conseguiam achar graça na vida e não viam os desafios da sobrevivência como sendo um peso duro de carregar.

Sandoval não era tão atrasado em relação à tecnologia, ele e sua mulher Margarete tinham um celular pebinha, para quem não sabe o que quer dizer “pebinha”, é uma expressão para descrever um aparelho celular muito simples, que só serve mesmo para fazer ligações e mais nada. Whatsapp? Instagram? Facebook? Nem pensar! Os aparelhos pebinhas não possuem suporte para aplicativos. Sandoval nem se interessava por isso. Nem ele e nem sua mulher. Ambos estavam muito felizes com seu pebinhas. 

Porém, um dia, o amigo de Sandoval, amigo do peito mesmo, o Nandão, que também trabalhava como servente de pedreiro na mesma construtora, comprou um tal celular moderno, que pegava Whatsapp, Instagram, Facebook, fazia fotos e filmagens bonitas por demais. Nandão se atolou de prestações na loja, parcelou o tal celular em doze vezes, com uma prestação muito alta. Mas Nandão não tinha um “pinto para dar água”, ou seja, não era casado, não tinha filhos, e o único gasto extra que ele tinha era uma cesta básica que ele comprava para sua mãe já idosa.

No dia em que Nandão comprou o celular moderno, chegou no trabalho todo cheio das vaidades, exibindo o aparelho para todos os outros colegas trabalhadores. Todo mundo desejou ver de perto o novo celular do colega, aquilo foi um acontecimento extraordinário, só se via as rodinhas de trabalhadores em volta de Nandão. O Mestre de Obras ficou observando aquele alvoroço todo e resolveu dar uns alertas sérios para que a turma voltasse para o trabalho, porque o serviço estava sendo prejudicado com as novidades de Nandão.

A jornada de trabalho findou-se e Sandoval foi para a casa com o celular de Nandão dentro da sua cabeça. Dizia para si mesmo – eu quero um bicho daquele para mim, vou comprar um também, nem que eu tenha que deixar de comer as minhas buchadas, a Margarete também vai ter que fazer umas economias lá em casa. Economizando nos gastos vou poder comprar um celular para mim igual ao do Nandão. – ele estava obcecado pelo celular moderno do colega. 

Depois que chegou em casa tomou um belo banho, jantou um arrozinho bem soltinho que só sua Margarete sabia fazer, com aquela carne de sol frita e umas rodelinhas de tomate. Abriu a geladeira, pegou um copo de água fresca e ficou tomando olhando fixamente para a mulher lavando as louças na pia. O que Sandoval estava pensando? O leitor nem imagina? Sandoval estava pensando em como dizer para a mulher que iria comprar um celular moderno, caro demais para o seu bolso. Ele sabia que Margarete, mulher muito equilibrada, não iria permitir de jeito nenhum. Até porque, Sandoval já estava há mais de três anos com uma janela enorme na boca, faltavam-lhe quatro dentes no meio da arcada dentária superior. Quando sorria largamente, via-se apenas duas presas enormes, uma de cada lado, como se fossem os esteios de uma portão. Isso nunca havia sido problema para ele, pois não era vaidoso, se preocupava mais em colocar a comida na mesa e não deixar seus filhos e sua esposa passarem fome, do que cuidar dos seus dentes.

Mas, depois que Sandoval viu aquele bendito aparelho de Nandão e o que ele fazia, ficou atordoado, desejou mesmo ter um igual para ele. _ Poxa vida, eu mereço! Dou duro no trabalho há anos, e não posso me dar um presente desses?! – dizia para si. 

Chegou a hora de ir para a cama dormir, ele foi na frente, perfumou-se e deitou esperando a esposa vir deitar também. Ele só queria falar do tal celular para ela, mas como já conhecia Margarete, precisava preparar o terreno para ela compreender e não brigar com ele, precisava usar também as palavras certas.

Quando Margarete entrou no quarto, Sandoval, com uma voz melosa, puxou logo assunto com ela:

_ Ô minha véia, mas você tá tão bonita! Não pense que eu não vejo a sua beleza, é que as vezes eu chego cansado demais do serviço e acabado sem ânimo para nada. Minha véia, me diz uma coisa, o que é que você está fazendo que tá ficando cada vez mais linda? Você está mais linda do que quando eu te conheci! É verdade minha flor! – disse Sandoval. Ele estava a adocicar Margarete, que, já conhecendo o marido, questionou-o:

_ Fala logo Sandoval! Eu te conheço. Quando você vem com esse negócio de me elogiar, é porque está querendo me dobrar em alguma coisa. Vamos! Diga logo Homem! O que é que você está querendo me dizer? 

_ Minha flor, eu não posso te elogiar que você já pensa mal de mim! – disse.

_ Imagina Sandoval, eu não estou pensando mal de você, eu só estou dizendo que você está querendo me dizer alguma coisa, e pelo visto eu não vou gostar. – disse Margarete.

_ Está bem Marga, sabe o que é...

_ Hum, o que é Sandoval?

_ Nandão, aquele meu colega lá do trabalho, comprou um celular porreta demais ó! O bicho só falta falar sozinho!

_ E daí? – Margarete fez uma cara já quase adivinhando o que estava a sair da boca de Sandoval.

_ Daí que eu estava pensando se a gente...

_ A gente o que Sandoval?

_ Se a gente não podia comprar um igual! Eu fiquei pensando sabe, eu trabalho tanto, eu mereço ter um celular daqueles minha véia! 

_ Quanto custa esse celular Sandoval?

_ É... bem... Anh...

_ Quanto custa o tal celular Sandoval?

_ Três mil reais. – Disse levantando as sobrancelhas.

_ Você está louco Sandoval? Você está aí todo desdentado, precisando ir no dentista fazer uma ponte fixa para colocar nessa sua janela gigante, e não vai porque o dinheiro que você recebe só dá para as nossas despesas aqui de casa, e você vem me falar em comprar um celular de três mil reais! Você não está raciocinando Sandoval! – Margarete ficou enfurecida com o marido.

_ Droga de vida! – disse Sandoval decepcionado.

_ Droga de vida o quê Sandoval? É a vida que nós temos meu bem! E eu não reclamo, a gente tem que viver de acordo com a realidade e tentar ser feliz com ela! – Margarete sempre muito ponderada.

_ Olha aqui Margarete, você não tem que se importar com os meus dentes, com a minha janela na boca! Se eu que sou o dono da boca desdentada não estou me importando, porque você vai se importar? – disse zangado.

_ Ah meu querido, você é o dono da sua boca, mas na hora de me beijar sou eu que tenho que aguentar beijar um homem banguela.

_ Poxa Margarete, você nunca reclamou dos meus beijos! – disse Sandoval, decepcionado.

_ Nunca reclamei porque sabia que você gastava o dinheiro com coisas úteis, mas para gastar com os supérfluos, aí não dá né meu filho? – disse.

_ Pois agora é que eu vou comprar mesmo! Vou parcelar na loja em doze parcelas, e vou abrir mão de arrumar meus dentes, vou deixar de comer a minha buchada e tomar minha cervejinha, mas vou comprar um celular igual ao do Nandão. E por um ano, não precisa comprar roupas para mim, deixe que eu me viro com as que eu tenho. Amanhã vou na loja para comprar o meu celular.

_ Nossa Sandoval, como você é cabeça dura! Você prefere comprar um celular caro desses do que ir ao dentista e arrumar seus dentes! Deus me livre Sandoval, você não está raciocinando. – disse a mulher, muito decepcionada. 

A discussão parou e no dia seguinte Sandoval cumpriu o que havia dito, chamou Nandão e foi com ele até a loja onde o amigo havia comprado o celular. E como estava com o nome limpo, conseguiu comprar o tal aparelho moderno.

Sandoval saiu da loja se sentindo tão feliz e realizado que resolveu ligar para Margarete, que ainda estava aborrecida com ele, mas ele estava tão radiante de felicidade que as brigas da mulher se tornaram engraçada. Quem olhava aquele homem parado na calçada da rua falando ao celular e dando gargalhadas de felicidade com a sua boca banguela, mostrando uma janela imensa na arcada dentária superior, não compreendia por qual razão um homem prefere adquirir um objeto caríssimo só porque “todo mundo tem um”, e deixa de cuidar da própria saúde física. Era um contraste entre a aparência e a realidade que estava por trás dela. Muitas vezes o que se mostra para a sociedade externa não condiz com o que realmente se vive. 

Ao vencer a primeira prestação do celular Sandoval já se apertou, o dinheiro não deu, houve discussão em casa, porque Sandoval acusava a esposa de não ter economizado nos gastos do supermercado para sobrar o dinheiro de pagar a loja. Margarete, equilibrada como sempre, socorreu o marido, falou com uma amiga sua que trabalhava para uma família de um bairro nobre, e esta deu-lhe uma informação de grande importância, os patrões estavam precisando de um trabalhador para capinar um terreno, e foi aí que Sandoval conseguiu pagar a primeira prestação de seu celular moderno. Tudo bem que ele perdeu a folga de um final de semana, porque teve que fazer este extra, mas pelo menos conseguiu honrar o seu compromisso. Já as próximas prestações, essas iriam trazer novos desafios. E Margarete já estava ficando com a pulga atrás da orelha com Sandoval por causa de um tal de Zap.

Quando se está razoavelmente centrado, com a mente mais no térreo do que no último andar, já chegando na lua, é possível notar uma infinidade de coisas interessantes e até incompreensíveis nos cenários urbanos. E não é à toa que dizem que um bom observador é capaz de aprender muito mais do que aquele que lê com os olhos, mas a mente está a ver navios. Existem pessoas que aprendem muito mais na observância do que alguém lhes ensinando. Aquele ditado que diz que se você não aprende em casa, a vida vai lhe ensinar, vai de encontro a um aprendizado baseado na experiência e na observância do viver.

Nos dias de hoje, dias em que o consumismo vem crescendo de forma assustadora, há uma desigualdade social muito latente. Mas no que tange exclusivamente à tecnologia, o consumismo avançou sinais e derrubou barreiras diversas, inclusive a barreira do bom senso. Uma grande parcela da população mundial deixa de investir em saúde e conforto para adquirir bens de última geração. Os produtos eletrônicos subiram à cabeça das pessoas. Parece que a coisa mais importante é estar sempre competindo na aquisição de coisas modernas, é ter um carro modelo novo e revolucionário, é ter um celular de última geração, ou mesmo, vestir-se com a última tendência da moda porque todo mundo está vestindo.

O consumo consciente ainda é um desafio para o ser humano, e está longe de ser aderido na sociedade.


Rozilda Euzebio Costa
20 de março de 2019

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