Naquela manhã de junho tudo parecia meio ofuscado, o céu não se mostrava tão nítido como nos dias anteriores, as paisagens não se mostravam com exatidão.
Na estação, um aglomerado de pessoas num vai e vem sem fim, cada mente com seus próprios pensamentos e seus próprios sonhos e desafios. Muitos viajando a trabalho, enquanto tantos outros estavam em busca de um significado de sua própria existência.
Existe uma necessidade no ser humano de desafiar suas forças e seu destino, numa estação se pode ver um encontro de destinos desencontrados e desafiados. Você olha para algumas pessoas tão frágeis e se questiona; como pode alguém assim, estar viajando sozinho?!
Enquanto algumas pessoas tentam encontrar o seu destino, outras fogem dele como quem foge da morte, são mentes desafiando a si mesmas, numa tentativa de burlar as expectativas contrárias que o destino lhes apresenta.
No vagão 8, do trem que acabara de sair da estação de Roma com destino a Veneza, se podia notar muito bem que, cada passageiro trazia consigo uma história importante. Alguns até, cicatrizes no coração.
Havia ali, naquele vagão, que já acumulava milhares de outras histórias de passageiros que passaram por ele, cinco novas histórias. Eram dois brasileiros, uma inglesa, uma espanhola, e um indiano.
No fundo, as pessoas fogem de si mesmas enquanto acreditam que estão fugindo de situações que não gostariam de vivenciar dentro de seu mundo real de vida. Ou mesmo, acreditam que vão encontrar a felicidade num lugar distante, longe de suas próprias realidades.
Um médico brasileiro muito abatido, cabelos grisalhos, meia idade, olheiras profundas, e uma necessidade aparente de solidão. Com olhar baixo e sorriso forçado, por ter perdido a esposa recentemente, vitima de um câncer terminal, ele não demonstrava tanta satisfação em estar naquela viagem. Acompanhado de sua filha, uma bela mulher de pele morena e cabelos castanhos longos, com fios de luzes douradas dando-lhe um belo aspecto, ainda com a força da juventude a seu favor, o médico tentava fazer boa presença com os colegas de vagão. Percebia-se bem que ele sentia que estava amparado pela filha, confiava nela, era a filha que conduzia as decisões importantes. Talvez a filha fosse a sua única razão de ainda se esforçar para viver a vida que insistia em lhe cobrar ação. A filha comprara para os dois, um pacote de viagem para a Europa. Acreditava que esta viagem poderia reanimar seu pai, fazê-lo sentir a alegria de viver novamente, podia trazer ele de volta aos seus ofícios de médico com o mesmo ânimo de outrora, de quando a mãe ainda era viva. Após a morte da mãe, seu pai caiu em profunda depressão, pois a esposa era seu esteio, seu ombro, sua alegria. A despedida para sempre de sua esposa lhe deixara cicatrizes profundas na alma.
Uma jovem inglesa, de olhos verdes vívidos, pele muito alva, cabelos claros encaracolados e uma expressão de firmeza e contentamento com sua nova vida na Europa. Ainda meio enrolada com a nova língua, se fazia entender entre palavras repedidas do italiano, gaguejos e sinais. Falava de sua nova experiência com muito entusiasmo aos demais passageiros. Estava fazendo um curso em Roma, se sentia bem adaptada na cidade eterna.
Uma espanhola em busca de respostas, falando o italiano até razoavelmente, talvez, o conhecimento da língua do país tenha lhe ajudado a compreender os demais passageiros. Dentro daquele vagão de trem, todos queriam falar o italiano, afinal, não interessa de onde seja uma pessoa, se ela está na Rússia, deve se esforçar para falar a língua russa, se está na Itália, obviamente, se esforçará para falar o italiano. A jovem, de pele clara, alta, forte e destemida, cabelos ruivos e olhos castanhos, não tinha tanta vontade assim de falar, assim como o médico brasileiro, ela também sentia uma necessidade de silêncio e solidão. As conversas paralelas do vagão lhe incomodavam de certa forma. Percebia-se muito bem a sua inquietação com o barulho da fala dos demais. Aquela mulher sentia uma necessidade incessante de descobrir a razão de sua própria existência. Trazia em sua mente tantos questionamentos sem respostas. Não se sentia completa. Vivia a vida como quem está num sonho confuso, onde tudo parece não ter uma forma concreta e firme. Mesmo com o incômodo dos falatórios dentro do vagão de nº 8, a espanhola procurava transmitir um pouco de simpatia para não parecer tão insociável.
É impressionante como algumas pessoas se socializam com muita rapidez, e como também se acostumam e se adaptam a novos lugares com tanta facilidade. São pessoas que realmente poderão viver em qualquer parte do mundo, que vão sempre florescer e frutificar como se estivessem em sua terra nativa. Acredito que pessoas assim possuem um espírito livre, forte e destemido.
Um indiano, com sua pele morena e cabelos lisos, ainda muito jovem, de estatura mediana, olhos negros e um pouco vesgos, parecia ser muito simpático e sociável. Ansioso para se fazer entender aos demais passageiros, conversava pelos cotovelos, gesticulava como se estivesse regendo uma orquestra sinfônica. Seu domínio à nova língua ainda era muito precário. Conseguia-se compreender mais pelos seus gestos do que pela sua fala. Mas percebia-se bem que a jovem inglesa simpatizara muito por ele através da atenção que lhe dava e pelo tempo que despendia com ele.
Quando se está em viagem, se pode ver o outro lado da vida que se passa além das nossas moradas. Há um vai e vem de pessoas nas estações que chega a ser impressionante. Muitos estão a trabalho, mas uma grande maioria destas pessoas está apenas buscando respostas que não encontram em suas casas, em suas origens. Há pessoas perdidas em si mesmas, que não conseguem compreender a vida como ela se lhes apresenta. Muitos se rebelam e fazem as malas, saem pelo mundo em busca de respostas.
Há quem foge de si mesmo entre uma estação e outra, entre um aeroporto e outro, e há quem nunca se encontra, passando a vida toda numa busca constante e angustiosa de sua razão existencial.
Há quem, com pés ligeiros, toma um caminho e segue, acreditando que lá, muito além, irá encontrar o que procura.
Existe aquele, a quem a coragem lhe é amiga, lhe toma pelas mãos e lhe ajuda a caminhar até que se encontre em uma nova terra.
Existem ainda aqueles que acreditam ser de outro mundo e não se adaptam ao mundo em que a vida lhes inseriu. E muitos destes se perdem por caminhos e encruzilhadas, na busca constante do próprio mundo.
Há também aqueles que não reconhecem nem a própria família, acreditam que todos os membros lhes são estranhos, se sentem um membro inserido num corpo estranho, e por isso, desbravam o mundo à procura de uma família da qual acreditam pertencer.
Há quem acredita não ter vindo para ficar, e por isso está sempre de malas prontas para partir. São passageiros constantes da vida. Estão sempre de estação em estação, de aeroporto em aeroporto, numa certeza de que a próxima viagem talvez seja a última.
No fundo mesmo, todos nós somos passageiros da vida, e estamos na estação do tempo. A qualquer momento, o nosso trem pode chegar, e deveremos embarcar nele para partir, deixando para trás todas as nossas ansiedades, conflitos, e planos.
Rozilda Euzebio Costa